Trecho Monografia "O sentido do trabalho intelectual segundo Foucault" - Eduardo Popinhak Franco - 2007 - UFSC
"CAPÍTULO
II
2
Intelectual segundo Gramsci
Para entendermos melhor a posição de
Foucault a respeito da tarefa do intelectual procuramos aqui
apresentar brevemente sua conhecida tese sobre o tema. Falamos de A.
Gramsci (1891-1937), pensador italiano marxista, que consagrou uma
distinção entre “intelectual orgânico” e “intelectual
tradicional”.
Segundo Gramsci (1985, p. 7): “todos
os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos
os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”.
Para ele não existem não-intelectuais, pois não há atividade
humana que possa excluir, por mínima que seja, a atividade
intelectual. Todo homem desenvolve alguma atividade intelectual: é
um filósofo, um artista, um homem de gosto; e mesmo os homens
simples, todos participam de uma concepção de mundo, possuindo
assim uma linha mais ou menos consciente de conduta moral. Ou seja,
cada homem contribui para manter ou modificar uma concepção de
mundo ou promover novas maneiras de pensar.
Simionatto (1995), diz que, neste
sentido, não há atividade humana da qual se possa excluir a
intervenção intelectual, assim como, em qualquer trabalho físico,
existe um mínimo de qualificação técnica, um mínimo de atividade
intelectual criadora. Ou seja, não se pode separar o homo faber
do homo sapiens. Mesmo não exercendo funções intelectuais
específicas, todos os homens podem ser considerados intelectuais na
medida em que cada um exerce em grau mais ou menos elevado uma
atividade mental.
Gramsci fala dos intelectuais como um
agrupamento social, buscando a distinção no conjunto das relações
sociais, ou seja, no conjunto do sistema de relações no qual suas
atividades se encontram. O que distingue intelectuais de
não-intelectuais tem referência somente à função social da
categoria profissional dos intelectuais; leva-se em conta se na
atividade profissional específica incide o peso maior na elaboração
intelectual ou no esforço muscular-nervoso. Para Gramsci, portanto,
somente pode-se falar de diversos graus de atividade específica
intelectual, e não em não-intelectuais.
Falando de quem exerce função de
intelectual, Gramsci modifica a visão comum a respeito. Para ele
“por intelectual, devemos entender não somente essas camadas
sociais às quais chamamos tradicionalmente de intelectuais, mas, em
geral, toda massa social que exerce funções de organização no
sentido mais amplo: seja do domínio da produção, da cultura, ou da
administração pública”. (GRAMSCI apud SIMIONATTO, 1995, p. 57).
O que, portanto, caracteriza o
intelectual é o fato de colaborar ou não na organização da
sociedade. Gramsci sustenta que o mesmo desempenha uma função
organizativa da sociedade, na cultura ou noutras dimensões da vida
social. O intelectual distingue-se pela capacidade de organizar os
homens e o mundo em redor de si. Assim, o sindicalista, o militante
político, o padre, ou o líder camponês são tratados como
intelectuais.
Gramsci sinaliza para o fato de que
sob o capitalismo houve uma transição do trabalho intelectual de
“tipo tradicional” para o trabalho intelectual de “tipo
moderno”. O tipo tradicional é o literato, filósofo, jornalista,
artista – o qual é marcado pelo diletantismo e pela sua crença na
sua autonomia com relação a outros grupos sociais. O “tipo
orgânico” ou “intelectual moderno” se distingue por sua
especialização técnica, pelo hábito de trabalho coletivo. O
intelectual moderno em Gramsci será aquele capaz de articular a sua
especialidade profissional ao desenvolvimento de uma ação política
e cultural de natureza hegemônica. Assim os intelectuais são vistos
como os responsáveis pelo nexo teoria-prática, pelo encontro e
consenso entre elites e povo, pela criação de uma vontade
nacional-popular.
Percebemos que Gramsci introduziu uma
distinção que hoje para muitos já é consagrada. O conceito de
intelectual pode ser discutido a partir de dois critérios: pelo
lugar e função que exerce na estrutura social e pelo lugar e função
que desempenha em um determinado processo histórico. As duas
categorias de intelectuais derivam disso: o intelectual orgânico e o
intelectual tradicional.
Embora
tanto o intelectual orgânico quanto o tradicional contribuam para o
estabelecimento e a consolidação da hegemonia, é o intelectual
orgânico (cf. Gramsci, 1985, pp. 3-6) que contribui para a
homogeneidade de uma classe e consciência da função da mesma nos
campos social, político e econômico. Nasce de uma função
essencial ao mundo da produção econômica. Cada classe possui seus
intelectuais orgânicos e o desenvolvimento deste se daria por
especializações de aspectos parciais da atividade primitiva que o
novo tipo social pratica. Enquanto os intelectuais orgânicos
reconhecem sua vinculação com alguma visão de mundo, com algum
grupo social, os intelectuais tradicionais consideram-se autônomos e
independentes do grupo social dominante, e de qualquer grupo social.
Consideram-se pré-existentes em relação ao grupo social;
representariam a continuidade histórica que não foi interrompida
pelas modificações das formas sociais e políticas. O intelectual
tradicional é o tipo de intelectual formado a partir das
necessidades do domínio, nas condições das classes antigas.
Segundo Gramsci (1985, p. 5):
Cada
grupo social “essencial”, contudo, surgido na história a partir
da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento
desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se
desenrolou até aos nossos dias – categorias intelectuais
preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma
continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas
mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e
políticas.
Assim se pode afirmar que o
intelectual tradicional é aquele que sobrevive ao desaparecimento do
modo de produção anterior e não está ligado a nenhuma das classes
fundamentais. O intelectual tradicional – insista-se - concebe-se
como categoria autônoma: “Dado que estas várias categorias de
intelectuais tradicionais sentem com ´espírito de grupo` sua
ininterrupta continuidade histórica e sua ´qualificação´, eles
consideram a si mesmos como sendo autônomos e independentes do grupo
social dominante [...], revestidos de características próprias”
(GRAMSCI, 1985, p. 6).
É quando surge um novo bloco
histórico1
no qual os intelectuais tradicionais perdem a base social a qual
estavam organicamente vinculados. Ainda que se proclamem autônomos,
por se sentirem fortemente organizados, estes intelectuais acabam
formando uma casta. Desta forma, Gramsci critica a concepção que
considera a atividade intelectual como autônoma e independente, ou
desligada das atividades das classes sociais. O intelectual, para
Gramsci, não pode ser um indivíduo separado do resto da sociedade,
um indivíduo que basta a si mesmo. Por isso, de acordo com
Simionatto (1995, p. 54): “O intelectual tradicional não está,
portanto, preso ao passado; ele se articula ao presente porque é, ao
mesmo tempo, depositário de uma tradição cultural. Proveniente de
épocas pretéritas, ele analisa o presente à luz de valores que
foram desenvolvidos no passado”.
Por outro lado, eis como Gramsci
(1985, p. 3) se refere ao intelectual orgânico:
Cada
grupo social, nascendo no terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que
lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não
apenas no campo econômico, mas também no social e no político.
Assim, os intelectuais modernos, para
Gramsci, abrangem os técnicos, os empresários, os engenheiros, os
economistas e as demais funções ligadas ao desenvolvimento das
forças produtivas, ou seja, todas as atividades inerentes ao
conjunto geral das relações sociais, além de dirigentes sindicais,
políticos, dos intelectuais cientistas ou não que se reconhecem não
neutros ao realizarem, por exemplo, sua atividade acadêmica.
Os intelectuais que uma classe elabora
no seu processo de desenvolvimento compreendem, na maioria das vezes,
especializações de atividades inerentes à origem, função e lugar
que ocupam no modo de produção. “O empresário capitalista cria
consigo o técnico da indústria, o cientista de economia política,
o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc”
(GRAMSCI, 1985, p. 3).
Convém lembrar que hegemonia, para
Gramsci, significa consenso e coerção, ou seja, a combinação
entre o uso das leis para a direção e o uso da força para o
domínio e coerção. O pensador marxista inspira-se em Maquiavel
(cf. 1969, p. 107-109), para o qual existem duas maneiras de
governar: com as leis e com a força. A primeira é própria dos
homens e a segunda é própria dos animais. O primeiro modo não é
suficiente, portanto, convém recorrer ao segundo. Para o governo do
Príncipe é necessário usar da força do animal e das leis do
homem. O centauro Quiron, meio animal e meio homem, é a figura em
qual se inspira o príncipe para governar: precisa saber usar as duas
naturezas, pois uma sem a outra não é durável.
Contudo, em Gramsci aparece uma certa
ambigüidade a respeito do conceito de hegemonia: às vezes ela é
sinônimo de consenso, outras vezes a hegemonia inclui consenso e
coerção ao mesmo tempo. Aqui preferimos entender hegemonia como
consenso mais coerção, direção mais ditadura. Segundo Gramsci: “A
supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como
´domínio´ e como ´direção intelectual e moral´. Um grupo
social é dominante dos grupos adversários que tende a ´liquidar´
ou submeter também mediante a força armada; e é dirigente dos
grupos afins ou aliados”. (GRAMSCI apud COUTINHO, 1989, p. 78).
Em Gramsci, o Estado comporta duas
esferas principais: a sociedade política, que Gramsci também chama
de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”, é
formada pelo conjunto de mecanismos através dos quais a classe
dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e
que se identifica com os aparelhos de coerção, sob o controle das
burocracias executiva e policial-militar; e a sociedade civil,
formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis
pela elaboração e/ou difusão de ideologias, compreendendo o
sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos,
as organizações profissionais, a organização material da cultura
(revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa).
Segundo Coutinho (cf. 1989, p. 76-78),
as esferas da sociedade política e sociedade civil exercem funções
diferentes na organização da vida social, na articulação e
reprodução de relações de poder. Em conjunto, as duas esferas
formam o Estado, que, para Gramsci, significa ditadura e hegemonia.
Ele define o Estado, um “Estado ampliado”, como sociedade
política e sociedade civil, “hegemonia revestida de coerção”.
Ambas as esferas servem para conservar ou promover uma determinada
base econômica, de acordo com os interesses de uma classe social
fundamental. No âmbito e através da sociedade civil, as classes
buscam exercer sua hegemonia, buscam ganhar aliados para suas
posições, mediante a direção política e o consenso. Por meio da
sociedade política, as classes exercem sempre uma ditadura, uma
dominação mediante a coerção.
A sociedade política, para Gramsci, é
o “aparelho de coerção estatal que assegura ´legalmente´ a
disciplina dos grupos que não ´consentem´, nem ativa nem
passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na
previsão dos momentos de crise no comando e na direção, quando
fracassa o consenso espontâneo”. (GRAMSCI apud COUTINHO 1989, p.
78).
Neste contexto, explicando melhor o
que já dissemos acima, intelectuais orgânicos não são apenas os
organizadores da função econômica, mas também são portadores da
hegemonia que a classe dominante exerce na sociedade civil, através
de diferentes organizações culturais (Escola, Igreja, cinema,
rádio, TV, imprensa), assim como através dos partidos políticos,
que exercem a função de assegurar o consenso das classes dominadas
de acordo com os valores estabelecidos pela burguesia. Os
intelectuais também são organizadores da coerção que a classe
dominante exerce sobre as outras classes sociais através do aparato
administrativo, político, judicial e militar.
Segundo Gramsci:
Um
grupo social pode e até mesmo deve ser dirigente já antes de
conquistar o poder governamental (é essa uma das condições
principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce
o poder, e mesmo que o conserve firmemente nas mãos, torna-se
dominante, mas deve continuar a ser também ´dirigente´. (apud
COUTINHO, 1989, p. 91).
Qualquer grupo que aspira ao poder tem
a necessidade de atrair intelectuais ao seu serviço para fortalecer
sua hegemonia. Para Gramsci (1985, p. 9): “Uma das mais marcantes
características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do
domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica”
dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão
mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar
simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos”.
Uma classe dominante é mais forte ou
mais sólida em sua hegemonia quanto mais é capaz de assimilar os
intelectuais mais importantes das classes subalternas. As classes
dominantes, por sua força política e econômica e, às vezes,
cultural possuem uma imensa capacidade de atraírem intelectuais. Por
isso, surgem crises, que incluem sempre a crise no apoio dos
intelectuais ao grupo dirigente.
Gramsci vê, portanto, os intelectuais
como figuras essenciais para a reprodução da ordem vigente. Os
intelectuais são integrantes de uma categoria social, responsáveis
pela elaboração das estratégias de dominação simbólica, nas
esferas política, religiosa, educacional, artística ou científica,
sendo agentes fundamentais para a reprodução de qualquer sistema
social. Mas em primeiro lugar, os intelectuais são os organizadores
da função econômica da classe a que estão ligados organicamente.
Além de controlar o modo de produção, os intelectuais organizam a
hegemonia da classe burguesa na sociedade civil e a coerção que por
meio do Estado esta exerce sobre as demais frações e camadas de
classe.
Segundo Simionatto (cf. 1985, pp.
59-60) Aos intelectuais é atribuída também a tarefa de construir,
através da ação cultural, a criação e a transmissão da cultura
e da conquista do “consenso espontâneo” das grandes massas para
a direção da vida social e política pelo grupo socialmente
dominante. Cabe aos intelectuais construir o aparato de coerção
(aparato jurídico) necessário para garantir legalmente a disciplina
dos grupos que não consentem. Não há para Gramsci uma
independência dos intelectuais, na medida em que estão conectados
com as forças no poder ou em luta pelo poder.
O intelectual organiza a cultura e os
homens, desempenha o papel, tanto de conservador como de
transformador da sociedade. Este articula o centro do aparelho
estatal de poder com o restante do corpo social. Ao produzir
ideologias, o intelectual fornece consciência e homogeneidade às
classes que representa. Assim, os grupos de intelectuais orgânicos
estão ligados às classes fundamentais, lutando junto à classe a
que está vinculado. Estar vinculado organicamente a uma classe
significa participar de um projeto junto às classes fundamentais:
burguesia ou proletariado.
Coutinho (1989), um dos importantes
estudiosos do pensamento Gramsciano, declara que a tarefa do “moderno
príncipe” (outro nome dado por Gramsci ao partido inspirando-se em
Maquiavel) para Gramsci consiste em superar os resíduos corporativos
(os momentos “egoístico-passionais”) da classe operária e em
contribuir para a formação de uma vontade coletiva
nacional-popular, um grau de consciência capaz de permitir uma
iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de
uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade diferenciada do
conjunto de relações sociais.
A construção homogênea dessa
vontade coletiva é obra prioritária, segundo Gramsci, do partido
político: ele tem o papel de síntese, de mediação em função dos
vários organismos particulares da classe operária e também em
função dos vários institutos das demais classes subalternas; e
esses organismos e institutos – graças à mediação do partido –
tornam-se as articulações do novo “bloco histórico”.
A vontade coletiva é concebida por
Gramsci até como consciência operosa de uma necessidade histórica,
ou seja, como a necessidade elevada à consciência e convertida em
práxis transformadora. Se é assim, o partido político apresenta-se
como detentor da visão verdadeira da realidade, e que precisa ser
posta em prática.
Assim, o partido não luta apenas por
uma renovação política, econômica e social, mas por uma revolução
cultural, pela criação e desenvolvimento de uma nova cultura.
Segundo Gramsci: “O moderno príncipe deverá e não poderá deixar
de ser o pregador e organizador de uma reforma intelectual e moral, o
que significa, de resto, criar o terreno para um desenvolvimento
ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido da
realização de uma forma superior e total de civilização moderna”.
(apud COUTINHO, 1989, p. 106).
Coutinho (1989) afirma, que ambos os
tipos, os intelectuais tradicionais e os intelectuais orgânicos,
exercem objetivamente funções análogas às do partido político:
eles dão forma homogênea à consciência de classe a que estão
organicamente ligados (no caso dos “tradicionais”, às classes a
que dão sua adesão em sua aparente neutralidade), preparando desse
modo a hegemonia dessa classe sobre o conjunto dos seus aliados.
Ambos são agentes da consolidação de uma vontade coletiva, de um
“bloco histórico”.
O intelectual tradicional, para
Gramsci, não é simplesmente um conservador e reacionário; o
intelectual tradicional pode torna-se também revolucionário, na
medida em que, na passagem de uma formação histórica para outra,
passe a defender os interesses da classe subalterna.
Por outro lado, e de modo geral,
Gramsci também assinala que o erro do intelectual consiste em
acreditar que se pode saber sem compreender e sentir, sem estar
apaixonado não só pelo saber, mas pelo objeto do saber. Não se faz
política-história sem conexão sentimental entre povo-nação e
intelectuais. Sem nexo entre intelectuais e povo-nação, as relações
entre eles reduzem-se a relações de natureza puramente burocrática
e formal, e os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio.
Gramsci descreve da seguinte maneira a
relação entre intelectuais e povo-nação:
Se
a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e
dirigidos, entre governantes e governados, se estabelece graças a
uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se
compreensão e, desta forma, sabe (não de uma maneira, mas
vivencialmente), só então a relação é de representação,
ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e
governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-se a vida
do conjunto, a única que é força social. (GRAMSCI, 1989, p. 139)
Assim, insista-se em que a função
dos intelectuais reside em formar uma camada de intelectuais médios
que liguem a massa à direção, para impedir a existência de um
hiato entre dirigentes e dirigidos.
Voltando ao que já dissemos no início
desta análise sobre o pensamento gramsciano, da mesma forma que
todos são intelectuais, todos os homens são “filósofos”. Há
uma “filosofia espontânea” peculiar a “todo o mundo”, que
está contida: 1) na linguagem, um conjunto de noções e conceitos
determinados; 2) no senso-comum e no bom-senso; 3) na religião
popular e, consequentemente, em todos os sistemas de crenças,
superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam
como o que se conhece por “folclore”.
Neste contexto, o pensador italiano
propõe a elaboração da própria concepção de mundo de uma
maneira crítica e consciente e, em ligação com isso, a escolha da
própria esfera de atividade e participação ativa da produção da
história do mundo. Ser o guia de si mesmo e não aceitar do
exterior, sem consciência crítica, passivamente e servilmente,
concepções de mundo impostas mecanicamente pelo ambiente exterior.
É papel do intelectual a superação e a crítica do senso comum,
que seria uma concepção de mundo absorvida acriticamente, ocasional
e desagregada, para a criação do bom senso. O senso comum é o
ponto de partida sobre o qual se deve elabor uma nova concepção de
mundo, embora o senso comum já possua um núcleo de bom senso, um
núcleo de senso comum sadio, unitário e coerente, merecendo ser
desenvolvido e superado.
A filosofia deve, porém, esforçar-se
sobretudo em dizer ´o que é´, e não tanto em apresentar uma visão
de mundo socialista como uma necessidade, e sim como uma
possibilidade. Se há um dever-ser em Gramsci, ele consiste em algo
concreto, história em ato ou filosofia em ato, ou seja, em política.
Para Gramsci, esta filosofia da práxis só pode se apresentar em uma
atitude e crítica como superação da maneira de pensar precedente e
do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente), ou
como crítica do senso comum e da filosofia dos intelectuais. A
filosofia da práxis não busca manter os “simplórios” na sua
filosofia primitiva do senso comum, mas conduzi-los a uma concepção
de vida superior. A filosofia da práxis afirma a exigência do
contato entre intelectuais e os “simplórios” justamente para
formar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível
um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos
intelectuais. Percebemos aqui haver uma dificuldade de encontrar
clareza no pensamento de Gramsci. Como pode ser o socialismo apenas
uma possibilidade, e ser ao mesmo tempo uma necessidade? Se for
apenas uma possibilidade, admite-se que a tarefa do intelectual é
diferente naquele que não vê no socialismo uma necessidade.
Desta forma, a relação entre teoria
e prática, tendo em conta os intelectuais, é apresentada pelo
pensador italiano com as seguintes palavras:
Autoconsciência
crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma
elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não
se torna independente “por si”, sem organizar-se (em sentido
lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem
organizadores e dirigentes, sem que o aspecto teórico da ligação
teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas
“especializadas” na elaboração conceitual e filosófica. (1989,
p. 21).
Por isso Mendes (2006) pode afirmar, a
partir de Gramsci, que a filosofia enquanto atividade humana exerce
um papel fundamental, como consciência da própria historicidade e
do desenvolvimento por ela representada, e entrando em contradição
com outras concepções de mundo ou com elementos de outras
concepções, interroga o sentido do presente. Para a elaboração
crítica de uma concepção de mundo coerente, o intelectual deve ter
consciência de si como produto do processo histórico desenvolvido
até hoje, que deixou uma infinidade de traços acolhidos sem análise
crítica. Não se pode separar a filosofia da história da filosofia,
e nem a cultura da história da cultura, portanto, cabe ao
intelectual o “conhece-te a ti mesmo” e “a descoberta de si
mesmo”, e a partir disso, escolher de forma crítica entre
concepções de mundo contraditórias.
Mas de toda maneira, Gramsci nunca
deixa de apresentar a visão socialista como a visão mais realista e
mais solidária com as classes subalternas. Por isso ele pode dizer
que:
A
compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de
uma luta de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes,
primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo,
finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do
real. A consciência de fazer parte de uma determinada força
hegemônica (isto é, consciência política) é a primeira fase de
uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática
finalmente se unificam. (GRAMSCI, 1989, p. 21)
1
Bloco histórico para Gramsci tem o sentido da articulação entre
infra-estrutura e superestrutura, ou seja, a unidade entre estrutura
socioeconômica e a superestrutura político-ideológica, ou de
formação social no sentido marxiano. Gramsci emprega este termo
para indicar as alianças de classe na formação de um bloco
histórico, como no socialismo."
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