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domingo, 12 de janeiro de 2014

Intelectual segundo Gramsci


Trecho Monografia "O sentido do trabalho intelectual segundo Foucault" - Eduardo Popinhak Franco - 2007 - UFSC

"CAPÍTULO II

2 Intelectual segundo Gramsci

Para entendermos melhor a posição de Foucault a respeito da tarefa do intelectual procuramos aqui apresentar brevemente sua conhecida tese sobre o tema. Falamos de A. Gramsci (1891-1937), pensador italiano marxista, que consagrou uma distinção entre “intelectual orgânico” e “intelectual tradicional”.

Segundo Gramsci (1985, p. 7): “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”. Para ele não existem não-intelectuais, pois não há atividade humana que possa excluir, por mínima que seja, a atividade intelectual. Todo homem desenvolve alguma atividade intelectual: é um filósofo, um artista, um homem de gosto; e mesmo os homens simples, todos participam de uma concepção de mundo, possuindo assim uma linha mais ou menos consciente de conduta moral. Ou seja, cada homem contribui para manter ou modificar uma concepção de mundo ou promover novas maneiras de pensar.

Simionatto (1995), diz que, neste sentido, não há atividade humana da qual se possa excluir a intervenção intelectual, assim como, em qualquer trabalho físico, existe um mínimo de qualificação técnica, um mínimo de atividade intelectual criadora. Ou seja, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Mesmo não exercendo funções intelectuais específicas, todos os homens podem ser considerados intelectuais na medida em que cada um exerce em grau mais ou menos elevado uma atividade mental.

Gramsci fala dos intelectuais como um agrupamento social, buscando a distinção no conjunto das relações sociais, ou seja, no conjunto do sistema de relações no qual suas atividades se encontram. O que distingue intelectuais de não-intelectuais tem referência somente à função social da categoria profissional dos intelectuais; leva-se em conta se na atividade profissional específica incide o peso maior na elaboração intelectual ou no esforço muscular-nervoso. Para Gramsci, portanto, somente pode-se falar de diversos graus de atividade específica intelectual, e não em não-intelectuais.

Falando de quem exerce função de intelectual, Gramsci modifica a visão comum a respeito. Para ele “por intelectual, devemos entender não somente essas camadas sociais às quais chamamos tradicionalmente de intelectuais, mas, em geral, toda massa social que exerce funções de organização no sentido mais amplo: seja do domínio da produção, da cultura, ou da administração pública”. (GRAMSCI apud SIMIONATTO, 1995, p. 57).

O que, portanto, caracteriza o intelectual é o fato de colaborar ou não na organização da sociedade. Gramsci sustenta que o mesmo desempenha uma função organizativa da sociedade, na cultura ou noutras dimensões da vida social. O intelectual distingue-se pela capacidade de organizar os homens e o mundo em redor de si. Assim, o sindicalista, o militante político, o padre, ou o líder camponês são tratados como intelectuais.

Gramsci sinaliza para o fato de que sob o capitalismo houve uma transição do trabalho intelectual de “tipo tradicional” para o trabalho intelectual de “tipo moderno”. O tipo tradicional é o literato, filósofo, jornalista, artista – o qual é marcado pelo diletantismo e pela sua crença na sua autonomia com relação a outros grupos sociais. O “tipo orgânico” ou “intelectual moderno” se distingue por sua especialização técnica, pelo hábito de trabalho coletivo. O intelectual moderno em Gramsci será aquele capaz de articular a sua especialidade profissional ao desenvolvimento de uma ação política e cultural de natureza hegemônica. Assim os intelectuais são vistos como os responsáveis pelo nexo teoria-prática, pelo encontro e consenso entre elites e povo, pela criação de uma vontade nacional-popular.

Percebemos que Gramsci introduziu uma distinção que hoje para muitos já é consagrada. O conceito de intelectual pode ser discutido a partir de dois critérios: pelo lugar e função que exerce na estrutura social e pelo lugar e função que desempenha em um determinado processo histórico. As duas categorias de intelectuais derivam disso: o intelectual orgânico e o intelectual tradicional.

Embora tanto o intelectual orgânico quanto o tradicional contribuam para o estabelecimento e a consolidação da hegemonia, é o intelectual orgânico (cf. Gramsci, 1985, pp. 3-6) que contribui para a homogeneidade de uma classe e consciência da função da mesma nos campos social, político e econômico. Nasce de uma função essencial ao mundo da produção econômica. Cada classe possui seus intelectuais orgânicos e o desenvolvimento deste se daria por especializações de aspectos parciais da atividade primitiva que o novo tipo social pratica. Enquanto os intelectuais orgânicos reconhecem sua vinculação com alguma visão de mundo, com algum grupo social, os intelectuais tradicionais consideram-se autônomos e independentes do grupo social dominante, e de qualquer grupo social. Consideram-se pré-existentes em relação ao grupo social; representariam a continuidade histórica que não foi interrompida pelas modificações das formas sociais e políticas. O intelectual tradicional é o tipo de intelectual formado a partir das necessidades do domínio, nas condições das classes antigas.

Segundo Gramsci (1985, p. 5):

Cada grupo social “essencial”, contudo, surgido na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.

Assim se pode afirmar que o intelectual tradicional é aquele que sobrevive ao desaparecimento do modo de produção anterior e não está ligado a nenhuma das classes fundamentais. O intelectual tradicional – insista-se - concebe-se como categoria autônoma: “Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com ´espírito de grupo` sua ininterrupta continuidade histórica e sua ´qualificação´, eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e independentes do grupo social dominante [...], revestidos de características próprias” (GRAMSCI, 1985, p. 6).

É quando surge um novo bloco histórico1 no qual os intelectuais tradicionais perdem a base social a qual estavam organicamente vinculados. Ainda que se proclamem autônomos, por se sentirem fortemente organizados, estes intelectuais acabam formando uma casta. Desta forma, Gramsci critica a concepção que considera a atividade intelectual como autônoma e independente, ou desligada das atividades das classes sociais. O intelectual, para Gramsci, não pode ser um indivíduo separado do resto da sociedade, um indivíduo que basta a si mesmo. Por isso, de acordo com Simionatto (1995, p. 54): “O intelectual tradicional não está, portanto, preso ao passado; ele se articula ao presente porque é, ao mesmo tempo, depositário de uma tradição cultural. Proveniente de épocas pretéritas, ele analisa o presente à luz de valores que foram desenvolvidos no passado”.

Por outro lado, eis como Gramsci (1985, p. 3) se refere ao intelectual orgânico:

Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político.

Assim, os intelectuais modernos, para Gramsci, abrangem os técnicos, os empresários, os engenheiros, os economistas e as demais funções ligadas ao desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, todas as atividades inerentes ao conjunto geral das relações sociais, além de dirigentes sindicais, políticos, dos intelectuais cientistas ou não que se reconhecem não neutros ao realizarem, por exemplo, sua atividade acadêmica.

Os intelectuais que uma classe elabora no seu processo de desenvolvimento compreendem, na maioria das vezes, especializações de atividades inerentes à origem, função e lugar que ocupam no modo de produção. “O empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista de economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc” (GRAMSCI, 1985, p. 3).

Convém lembrar que hegemonia, para Gramsci, significa consenso e coerção, ou seja, a combinação entre o uso das leis para a direção e o uso da força para o domínio e coerção. O pensador marxista inspira-se em Maquiavel (cf. 1969, p. 107-109), para o qual existem duas maneiras de governar: com as leis e com a força. A primeira é própria dos homens e a segunda é própria dos animais. O primeiro modo não é suficiente, portanto, convém recorrer ao segundo. Para o governo do Príncipe é necessário usar da força do animal e das leis do homem. O centauro Quiron, meio animal e meio homem, é a figura em qual se inspira o príncipe para governar: precisa saber usar as duas naturezas, pois uma sem a outra não é durável.

Contudo, em Gramsci aparece uma certa ambigüidade a respeito do conceito de hegemonia: às vezes ela é sinônimo de consenso, outras vezes a hegemonia inclui consenso e coerção ao mesmo tempo. Aqui preferimos entender hegemonia como consenso mais coerção, direção mais ditadura. Segundo Gramsci: “A supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ´domínio´ e como ´direção intelectual e moral´. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a ´liquidar´ ou submeter também mediante a força armada; e é dirigente dos grupos afins ou aliados”. (GRAMSCI apud COUTINHO, 1989, p. 78).

Em Gramsci, o Estado comporta duas esferas principais: a sociedade política, que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”, é formada pelo conjunto de mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção, sob o controle das burocracias executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão de ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa).

Segundo Coutinho (cf. 1989, p. 76-78), as esferas da sociedade política e sociedade civil exercem funções diferentes na organização da vida social, na articulação e reprodução de relações de poder. Em conjunto, as duas esferas formam o Estado, que, para Gramsci, significa ditadura e hegemonia. Ele define o Estado, um “Estado ampliado”, como sociedade política e sociedade civil, “hegemonia revestida de coerção”. Ambas as esferas servem para conservar ou promover uma determinada base econômica, de acordo com os interesses de uma classe social fundamental. No âmbito e através da sociedade civil, as classes buscam exercer sua hegemonia, buscam ganhar aliados para suas posições, mediante a direção política e o consenso. Por meio da sociedade política, as classes exercem sempre uma ditadura, uma dominação mediante a coerção.

A sociedade política, para Gramsci, é o “aparelho de coerção estatal que assegura ´legalmente´ a disciplina dos grupos que não ´consentem´, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, quando fracassa o consenso espontâneo”. (GRAMSCI apud COUTINHO 1989, p. 78).

Neste contexto, explicando melhor o que já dissemos acima, intelectuais orgânicos não são apenas os organizadores da função econômica, mas também são portadores da hegemonia que a classe dominante exerce na sociedade civil, através de diferentes organizações culturais (Escola, Igreja, cinema, rádio, TV, imprensa), assim como através dos partidos políticos, que exercem a função de assegurar o consenso das classes dominadas de acordo com os valores estabelecidos pela burguesia. Os intelectuais também são organizadores da coerção que a classe dominante exerce sobre as outras classes sociais através do aparato administrativo, político, judicial e militar.

Segundo Gramsci:

Um grupo social pode e até mesmo deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (é essa uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder, e mesmo que o conserve firmemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também ´dirigente´. (apud COUTINHO, 1989, p. 91).

Qualquer grupo que aspira ao poder tem a necessidade de atrair intelectuais ao seu serviço para fortalecer sua hegemonia. Para Gramsci (1985, p. 9): “Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos”.

Uma classe dominante é mais forte ou mais sólida em sua hegemonia quanto mais é capaz de assimilar os intelectuais mais importantes das classes subalternas. As classes dominantes, por sua força política e econômica e, às vezes, cultural possuem uma imensa capacidade de atraírem intelectuais. Por isso, surgem crises, que incluem sempre a crise no apoio dos intelectuais ao grupo dirigente.

Gramsci vê, portanto, os intelectuais como figuras essenciais para a reprodução da ordem vigente. Os intelectuais são integrantes de uma categoria social, responsáveis pela elaboração das estratégias de dominação simbólica, nas esferas política, religiosa, educacional, artística ou científica, sendo agentes fundamentais para a reprodução de qualquer sistema social. Mas em primeiro lugar, os intelectuais são os organizadores da função econômica da classe a que estão ligados organicamente. Além de controlar o modo de produção, os intelectuais organizam a hegemonia da classe burguesa na sociedade civil e a coerção que por meio do Estado esta exerce sobre as demais frações e camadas de classe.

Segundo Simionatto (cf. 1985, pp. 59-60) Aos intelectuais é atribuída também a tarefa de construir, através da ação cultural, a criação e a transmissão da cultura e da conquista do “consenso espontâneo” das grandes massas para a direção da vida social e política pelo grupo socialmente dominante. Cabe aos intelectuais construir o aparato de coerção (aparato jurídico) necessário para garantir legalmente a disciplina dos grupos que não consentem. Não há para Gramsci uma independência dos intelectuais, na medida em que estão conectados com as forças no poder ou em luta pelo poder.

O intelectual organiza a cultura e os homens, desempenha o papel, tanto de conservador como de transformador da sociedade. Este articula o centro do aparelho estatal de poder com o restante do corpo social. Ao produzir ideologias, o intelectual fornece consciência e homogeneidade às classes que representa. Assim, os grupos de intelectuais orgânicos estão ligados às classes fundamentais, lutando junto à classe a que está vinculado. Estar vinculado organicamente a uma classe significa participar de um projeto junto às classes fundamentais: burguesia ou proletariado.

Coutinho (1989), um dos importantes estudiosos do pensamento Gramsciano, declara que a tarefa do “moderno príncipe” (outro nome dado por Gramsci ao partido inspirando-se em Maquiavel) para Gramsci consiste em superar os resíduos corporativos (os momentos “egoístico-passionais”) da classe operária e em contribuir para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, um grau de consciência capaz de permitir uma iniciativa política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade diferenciada do conjunto de relações sociais.

A construção homogênea dessa vontade coletiva é obra prioritária, segundo Gramsci, do partido político: ele tem o papel de síntese, de mediação em função dos vários organismos particulares da classe operária e também em função dos vários institutos das demais classes subalternas; e esses organismos e institutos – graças à mediação do partido – tornam-se as articulações do novo “bloco histórico”.

A vontade coletiva é concebida por Gramsci até como consciência operosa de uma necessidade histórica, ou seja, como a necessidade elevada à consciência e convertida em práxis transformadora. Se é assim, o partido político apresenta-se como detentor da visão verdadeira da realidade, e que precisa ser posta em prática.

Assim, o partido não luta apenas por uma renovação política, econômica e social, mas por uma revolução cultural, pela criação e desenvolvimento de uma nova cultura. Segundo Gramsci: “O moderno príncipe deverá e não poderá deixar de ser o pregador e organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna”. (apud COUTINHO, 1989, p. 106).

Coutinho (1989) afirma, que ambos os tipos, os intelectuais tradicionais e os intelectuais orgânicos, exercem objetivamente funções análogas às do partido político: eles dão forma homogênea à consciência de classe a que estão organicamente ligados (no caso dos “tradicionais”, às classes a que dão sua adesão em sua aparente neutralidade), preparando desse modo a hegemonia dessa classe sobre o conjunto dos seus aliados. Ambos são agentes da consolidação de uma vontade coletiva, de um “bloco histórico”.

O intelectual tradicional, para Gramsci, não é simplesmente um conservador e reacionário; o intelectual tradicional pode torna-se também revolucionário, na medida em que, na passagem de uma formação histórica para outra, passe a defender os interesses da classe subalterna.

Por outro lado, e de modo geral, Gramsci também assinala que o erro do intelectual consiste em acreditar que se pode saber sem compreender e sentir, sem estar apaixonado não só pelo saber, mas pelo objeto do saber. Não se faz política-história sem conexão sentimental entre povo-nação e intelectuais. Sem nexo entre intelectuais e povo-nação, as relações entre eles reduzem-se a relações de natureza puramente burocrática e formal, e os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio.

Gramsci descreve da seguinte maneira a relação entre intelectuais e povo-nação:
Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, se estabelece graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, sabe (não de uma maneira, mas vivencialmente), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social. (GRAMSCI, 1989, p. 139)

Assim, insista-se em que a função dos intelectuais reside em formar uma camada de intelectuais médios que liguem a massa à direção, para impedir a existência de um hiato entre dirigentes e dirigidos.

Voltando ao que já dissemos no início desta análise sobre o pensamento gramsciano, da mesma forma que todos são intelectuais, todos os homens são “filósofos”. Há uma “filosofia espontânea” peculiar a “todo o mundo”, que está contida: 1) na linguagem, um conjunto de noções e conceitos determinados; 2) no senso-comum e no bom-senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todos os sistemas de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam como o que se conhece por “folclore”.

Neste contexto, o pensador italiano propõe a elaboração da própria concepção de mundo de uma maneira crítica e consciente e, em ligação com isso, a escolha da própria esfera de atividade e participação ativa da produção da história do mundo. Ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, sem consciência crítica, passivamente e servilmente, concepções de mundo impostas mecanicamente pelo ambiente exterior. É papel do intelectual a superação e a crítica do senso comum, que seria uma concepção de mundo absorvida acriticamente, ocasional e desagregada, para a criação do bom senso. O senso comum é o ponto de partida sobre o qual se deve elabor uma nova concepção de mundo, embora o senso comum já possua um núcleo de bom senso, um núcleo de senso comum sadio, unitário e coerente, merecendo ser desenvolvido e superado.

A filosofia deve, porém, esforçar-se sobretudo em dizer ´o que é´, e não tanto em apresentar uma visão de mundo socialista como uma necessidade, e sim como uma possibilidade. Se há um dever-ser em Gramsci, ele consiste em algo concreto, história em ato ou filosofia em ato, ou seja, em política. Para Gramsci, esta filosofia da práxis só pode se apresentar em uma atitude e crítica como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente), ou como crítica do senso comum e da filosofia dos intelectuais. A filosofia da práxis não busca manter os “simplórios” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas conduzi-los a uma concepção de vida superior. A filosofia da práxis afirma a exigência do contato entre intelectuais e os “simplórios” justamente para formar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais. Percebemos aqui haver uma dificuldade de encontrar clareza no pensamento de Gramsci. Como pode ser o socialismo apenas uma possibilidade, e ser ao mesmo tempo uma necessidade? Se for apenas uma possibilidade, admite-se que a tarefa do intelectual é diferente naquele que não vê no socialismo uma necessidade.

Desta forma, a relação entre teoria e prática, tendo em conta os intelectuais, é apresentada pelo pensador italiano com as seguintes palavras:

Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não se torna independente “por si”, sem organizar-se (em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceitual e filosófica. (1989, p. 21).

Por isso Mendes (2006) pode afirmar, a partir de Gramsci, que a filosofia enquanto atividade humana exerce um papel fundamental, como consciência da própria historicidade e do desenvolvimento por ela representada, e entrando em contradição com outras concepções de mundo ou com elementos de outras concepções, interroga o sentido do presente. Para a elaboração crítica de uma concepção de mundo coerente, o intelectual deve ter consciência de si como produto do processo histórico desenvolvido até hoje, que deixou uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, e nem a cultura da história da cultura, portanto, cabe ao intelectual o “conhece-te a ti mesmo” e “a descoberta de si mesmo”, e a partir disso, escolher de forma crítica entre concepções de mundo contraditórias.

Mas de toda maneira, Gramsci nunca deixa de apresentar a visão socialista como a visão mais realista e mais solidária com as classes subalternas. Por isso ele pode dizer que:

A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI, 1989, p. 21)


1 Bloco histórico para Gramsci tem o sentido da articulação entre infra-estrutura e superestrutura, ou seja, a unidade entre estrutura socioeconômica e a superestrutura político-ideológica, ou de formação social no sentido marxiano. Gramsci emprega este termo para indicar as alianças de classe na formação de um bloco histórico, como no socialismo."

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