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Dos
alimentos que comemos ao ar que respiramos, vivemos sob constante medo.
"A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne
vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade
dos carros.", alerta Luc Ferry, filósofo francês.
Como é possível atingir serenidade, o objetivo da filosofia, em meio a
este contexto? Em entrevista, Ferry analisa a percepção de mundo
contemporânea e aponta ensinamentos da filosofia para esclarecer algumas
angústias atuais.
Qual é o maior obstáculo à felicidade?
Luc Ferry: A felicidade não existe. Temos momentos de alegria, mas não existe um estado permanente de satisfação. Separações, a morte de pessoas queridas, doenças e acidentes são inevitáveis. É por isso que a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo. É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.
O medo da morte é o maior obstáculo para o homem?
Luc Ferry: Existem basicamente três grandes medos. O primeiro é a timidez. Ele aparece, por exemplo, quando somos apresentados a alguém muito importante, ou quando precisamos falar em público. É a pressão da sociedade. O segundo medo são as fobias. Medo do escuro, de insetos, de ficar preso num elevador. O terceiro é o medo da morte. Tememos mais a morte de pessoas que amamos do que a nossa própria morte. Não me refiro apenas à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O corvo do poema homônimo de Edgar Alan Poe exemplifica isso perfeitamente. Repete a todo momento, como um papagaio, a expressão “nunca mais”. Essa é a morte dentro da vida. Para uma criança, pode ser o divórcio dos pais, já que nunca mais os verá juntos. O nunca mais, a irreversibilidade da vida, nos dá a experiência da morte. A grande questão da serenidade, e não da felicidade, é como vencer esse medo. Toda a filosofia, desde Homero e Platão até Schopenhauer e Nietzsche está baseada na doutrina da serenidade.
Além das fobias conhecidas, existem as modernas?
Luc Ferry: Vivemos a sociedade do medo. Aos três grandes medos que eu falei, adiciona-se outro, tipicamente ocidental: o medo que se desenvolveu com a ecologia politica. Medo do eleito estufa, do buraco na camada de ozônio, do aquecimento global, de micróbios, da poluição, do fim dos recursos naturais. A cada ano, um novo medo se adiciona a todos os outros: medo da carne vermelha, da gripe aviária, da aids, do sexo, do tabaco, da velocidade dos carros. Os grandes ecologistas e os filmes que tratam do tema têm como objetivo principal trazer o medo. No livro O princípio da responsabilidade, do filósofo alemão Hans Jonas, há um capítulo chamado Heurística do medo. Nele, o medo é descrito como uma paixão positiva e útil.
Em toda a história da filosofia ocidental, o medo é o inimigo, é algo
infantil, que faz mal. A ecologia inverte essa tradição filosófica ao
sustentar que o medo é o começo de uma nova sabedoria e que, graças ao
medo, os seres humanos vão tomar consciência dos perigos que existem no
planeta. O medo não é mais visto como algo infantilizado, mas como o
primeiro passo no caminho da sabedoria. É o que os ecologistas chamam de
princípio da precaução. Isso não quer dizer que os ecologistas estejam
errados. Há um componente de verdade no que dizem, mas há também muita
mentira. Não aceito a ideia de um movimento político que se baseie
exclusivamente no medo.
Qual a diferença entre a angústia vista pela psicanálise e pela filosofia?
Luc Ferry: A filosofia e a psicanálise lidam com angústias distintas. A psicanálise luta contra a angústia patológica, o conflito entre o desejo e a moral, uma tentativa de reconciliar o indivíduo consigo próprio. No entanto, mesmo se atingíssemos uma perfeita saúde mental, depois de 20 anos de análise bem sucedida, restaria a angústia metafísica. Aí começa a filosofia, que ensina a alcançar a sabedoria no sentido da serenidade, não da felicidade.
O que há na filosofia que a religião não tem?
Luc Ferry: Tanto a grande religião quanto a grande filosofia pretendem fazer com que as pessoas deixem de ter medo. Essencialmente, o que a religião diz é que, se alguém tem fé, se acredita em Deus, não precisa ter medo. Não precisa, por exemplo, temer a morte. As religiões são a doutrina da salvação pela fé. Todas as filosofias querem a mesma coisa: salvar os homens do medo que os impede de viver bem. Só que as grandes filosofias são as doutrinas da salvação sem Deus e sem a fé.
Com a disseminação do medo, ficou mais difícil superá-lo?
Luc Ferry: A primeira grande resposta a essa pergunta nasce na Odisséia, de Homero. O poema conta como Ulisses vencerá os maiores medos da existência humana: o medo do passado e do futuro. Ulisses, que vive em Ítaca, uma cidade grega, com sua mulher Penélope, precisa partir para a Guerra de Tróia. Fica 20 anos longe de casa, imerso no caos da guerra.
A história mostra como Ulisses vai do caos à harmonia, da guerra à paz,
do ódio ao amor de Penélope. Durante 20 anos ele se agarra ao passado,
ou ao futuro, à nostalgia de Ítaca, ou à esperança de voltar a Ítaca.
Quando retorna à terra natal depois de tanto tempo, pode, enfim, viver
no presente. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que
consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. Se eu me
separar, se mudar de casa, se trocar de emprego. O passado já aconteceu.
O futuro é uma ilusão.
O ensino da filosofia deveria ser obrigatório nas escolas?
Luc Ferry: Tudo depende da forma como ensinamos. Infelizmente, a maior parte do tempo, ao menos na França, reduzimos a filosofia a um tipo de instrução civil. Apresentamos aos alunos questões sem respostas possíveis: “O que é o belo?”, “o que é o bem?”, “o que é o tempo?”. Isso não tem nada a ver com a filosofia. É uma imbecilidade, uma estupidez. É melhor não ensinar filosofia do que ensinar dessa forma.
Se um dia quisermos que as crianças pensem por si próprias, precisamos
ensinar a história de grandes visões do mundo. Contar, por exemplo, que
na filosofia existem cinco grandes respostas para a pergunta “o que é a
vida boa”: a grega, a cristã, a do humanismo moderno, a de pensadores
como Nietzsche e a contemporânea. Isso é apaixonante. A filosofia não
consiste em tentar construir um argumento para responder a uma questão
absurda. A filosofia é aprender a viver.
Como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas?
Luc Ferry: Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem em uma coleira para levá-lo para passear como se fosse um cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o que os outros diziam.
O sábio não é apenas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os
outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais
dessas “boas pessoas”. Ele desvia o olhar para concentrar-se na
natureza, no cosmos. Vive em harmonia com a ordem natural, com ele
próprio e com o mundo.
Por que os maiores filósofos do mundo são gregos e alemães?
Luc Ferry: Tanto no caso grego, quanto no alemão, o grande motivo é a proximidade entre religião e filosofia. A filosofia sempre foi a secularização e a laicização de uma religião já existente. A filosofia grega, por exemplo, é uma versão secular e laica da mitologia grega. Da mesma forma, toda a filosofia alemã é uma apresentação racional da teologia protestante de Lutero.
Ao afirmar “eu não quero ler a bíblia com a tradução latina”, “eu
desconfio daqueles que estão no Vaticano”, Lutero resumiu o grande gesto
do protestantismo: a busca pela verdade absoluta. Esse gesto abarca
toda a filosofia alemã. Antes da filosofia, os dois povos viveram
momentos muito importantes na religião. Você não tem isso nos Estados
Unidos, nem na França. Ao contrário do que pensam os franceses,
Descartes não é um bom filósofo.
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